Espiritualidade Líquida

Construímos proximidade utilizando os objetos e experiências do nosso cotidiano, mas com os mesmos objetos e experiências também podemos cavar fossos e estabelecer distâncias. Longe não é necessariamente categoria de quem se encontra do outro lado da cidade, mas sim de quem está do lado de fora do coração.

Há pessoas que afastam o outro e o lançam para um exílio a fim de não se atrapalhar com o convívio. Há pessoas que se convencem que é melhor a frieza da distância do que a imprevisibilidade das relações.

No entanto, é preciso cuidado: A proximidade é perigosa! A aproximação faz cair as máscaras e isenta de pedágios para as vias que conduzem a alma. Por conta disso muitos preferem reprimi-la para não deprimir. E apesar disso a proximidade nos aquece, nos fortalece e segundo dizem até nos rejuvenesce.

Para estar perto não basta ocupar o mesmo endereço, é algo que se faz com o tom da voz – fala-se baixo para atrair o outro para mais perto – e o corpo inclinado, se oferece como ponte sobre o abismo do afastamento. Estar perto é a atitude que nos move para o outro apesar das distâncias, para comprimi-la e encurtá-las com a força da busca.

“Perto está o Senhor de todos os que o buscam, de todos os que o invocam em verdade” ( Salmos 145.18 ).

André Luís de Sant'Anna
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Em Contrução...
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Sobre o tema religião, é bom salientar logo que, nas páginas de Bauman, não se percebe um grande interesse. Inútil seria, então, buscar uma filosofia da religião, quando o autor nunca se prontificou para elaborar isso. De qualquer forma, porém, em vários parágrafos e ao longo da sua obra, Bauman se depara com o fenômeno religioso, oferecendo algumas reflexões que merecem a nossa atenção.

Bauman aborda o tema da verdade do ponto de vista sociológico, ou seja, da forma como os povos a utilizam para alcançar os próprios objetivos. Nada, então, de pesquisa ontológica sobre a essência da religião ou da verdade, mas sim uma concreta análise de como ambas são úteis para manter o povo no eixo. Segundo Bauman, a verdade pertence à retórica do poder. “A disputa acerca da veracidade ou falsidade de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do direito de alguns de falar com a autoridade que alguns outros deveriam obedecer.” (Bauman, 1998)

O problema da verdade é, portanto ligado ao tipo de relações de superioridade que entre os indivíduos ou entre os povos vem se moldando ao longo dos séculos. Neste sentido, toda teoria da verdade segue o modelo de Platão, segundo o qual só poucos escolhidos conseguem emergir da caverna para enxergar as coisas como elas são verdadeiramente. Ao mesmo tempo, porém, a teoria da verdade é elaborada para mostrar aquilo que os outros não conseguem fazer sem serem guiados pelos poucos iluminados. Na modernidade líquida, esta briga de “iluminados” para garantir o monopólio da verdade parece não ter mais espaço.

Porque a possibilidade de que diferentes opiniões podem ser não apenas simultaneamente julgadas verdadeiras, mas ser de fato simultaneamente verdadeiras, a teoria das verdades atualmente no centro da atenção dos filósofos parece ser privada de muito da sua função de disputa (Bauman, 1998)

O efeito da queda das grandes ideologias modernas no campo religioso é a percepção de um mundo plural, de culturas e religiões que não apenas devem ser toleradas, mas que necessitam um espaço vital para se expressar sem censura alguma. Se, na pré-modernidade, a diferença de credo era tolerada, apesar de muitas vezes ter provocado tensões e até guerras, hoje, na modernidade líquida, a pluralidade tornou-se uma necessidade. O problema da identidade, que já analisamos nos parágrafos anteriores e que tanta importância assume na análise de Bauman, vem aqui à tona. A verdade religiosa sempre foi apresentada como algo de absoluto que o indivíduo devia assumir por toda a vida. Os rituais de iniciação serviam para introduzir as pessoas no contexto da comunidade religiosa, cuja característica é a fidelidade aos valores assumidos. No novo contexto cultural, tudo isso é problemático, pois: O problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso (Bauman, 1998).

Nunca, na história, a verdade religiosa encontrou um contexto cultural tão desafiador. A incerteza do estilo pós-moderno, segundo Bauman, não gera a procura da religião, mas sim a busca sempre crescente de especialistas na identidade. As pessoas da modernidade líquida, assombradas pela incerteza que a cultura está gerando, não carecem de pregadores para lhes dizer o que devem fazer.

O fenômeno religioso que, na atualidade, mais chama a atenção de Bauman, é o fundamentalismo. Segundo o autor, o fundamentalismo não tem nada que ver nem com o misticismo, nem com as manifestações da irracionalidade humana, mas é um fenômeno tipicamente pós-moderno. O fundamentalismo consegue desfrutar os desenvolvimentos tecnológicos da modernidade sem pagar o preço salgado que ela exige, ou seja, a agonia do indivíduo condenado à auto-suficiência. O fundamentalismo atrai porque promete libertar os fiéis das agonias da escolha, das agonias da liberdade. Neste sentido, Bauman contradiz a tese comum, que vê no fundamentalismo algo de irracional, pois, segundo ele, o fundamentalismo “é uma oferta de racionalidade alternativa, feita sob a medida para os genuínos problemas que assediam os membros da sociedade pós-moderna” (Bauman, 1998)

A racionalidade proposta pelo fundamentalismo vai na direção contrária à lógica do mercado. De fato, se o mercado promove a liberdade de escolha, prosperando sobre a incerteza das situações de escolha, pelo contrário, o fundamentalismo assume o peso da escolha individual, legislando em termos seguros e firmes sobre todos os aspectos da vida. A segurança e a certeza são postas em primeiro lugar na visão fundamentalista da vida, por isso, neste mundo inquieto e angustiado, muitas pessoas são atraídas por esta proposta.

Segundo Bauman, o fundamentalismo encontra-se hoje presente nas três grandes religiões – cristianismo, judaísmo, islamismo – e é fruto de dois desenvolvimentos. O primeiro é a erosão do cânone rígido que mantinha unida a congregação dos fiéis. Um sinal disso é a proliferação das assim chamadas seitas que, na realidade, são a clara manifestação do desgaste que a essência destas religiões está viven do. O segundo desenvolvimento se encontra no fato que o homem pós-moderno tornou-se um selecionador involuntário e compulsivo minando, desta forma, a autoridade instituída. 

Tudo isso some no fundamentalismo, que invalida todas as propostas diferentes e recusa qualquer forma de diálogo e discussão, instilando nos fiéis um sentimento de certeza. E, assim, o fundamentalismo “transmite uma confortável sensação de segurança a ser ganha e saboreada dentro dos muros altos e impenetráveis que isolam o caos reinante lá fora.” (Bauman, 2005c, p. 93).

Na modernidade líquida, também a religião deve aprender a elaborar novas propostas que saibam encontrar o mundo rápido pósmoderno. Tudo aquilo que cheira velho e obsoleto é destinado a ficar para trás. Isto vale por qualquer fenômeno cultural, também pela religião, qualquer que seja.


Paolo Cugini
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Liquidez é a metáfora que Bauman utiliza para explicar o sentido da pós-modernidade. A crise das ideologias fortes, “pesadas”, “sólidas”, típicas da modernidade produziu, do ponto de vista cultural, um clima fluido, líquido, leve, caracterizado pela precariedade, incerteza, rapidez de movimento.

Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade [...] Enquanto os sólidos têm dimensões especiais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos)  a mudá-la. (Bauman, 2005).

Se, na modernidade, as ideologias elaboradas tinham a pretensão de serem abrangentes, exaustivas e, sobretudo orientativas, não é assim pela cultura elaborada na pós-modernidade, na qual tudo flui de um jeito extremamente rápido, de uma forma que, aquilo que era certo ontem, hoje não é mais. Neste mundo líquido, assistimos a algumas passagens importantes, que marcam o novo clima cultural.

A primeira passagem é de uma vida segura para uma vida precária.

“A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante.” (Bauman, 2005). Se a modernidade oferecia um leque de ideologias fortes, que produziam uma segurança existencial nas pessoas que nelas confiavam, neste mundo líquido não é mais assim. O desmoronamento das metanarrações da modernidade trouxe consigo a perda de pontos referenciais válidos, que pudessem oferecer segurança na vida das pessoas. A precariedade, de agora em diante, tornou-se não apenas um dado cultural mas, sobretudo, social, porque não foram apenas ideologias a desmanchar, mas também estilos de vida, costumes.

As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram este tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar o caminho de volta (Bauman, 2005).




Paolo Cugini

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