Espiritualidade Líquida

Sobre o tema religião, é bom salientar logo que, nas páginas de Bauman, não se percebe um grande interesse. Inútil seria, então, buscar uma filosofia da religião, quando o autor nunca se prontificou para elaborar isso. De qualquer forma, porém, em vários parágrafos e ao longo da sua obra, Bauman se depara com o fenômeno religioso, oferecendo algumas reflexões que merecem a nossa atenção.

Bauman aborda o tema da verdade do ponto de vista sociológico, ou seja, da forma como os povos a utilizam para alcançar os próprios objetivos. Nada, então, de pesquisa ontológica sobre a essência da religião ou da verdade, mas sim uma concreta análise de como ambas são úteis para manter o povo no eixo. Segundo Bauman, a verdade pertence à retórica do poder. “A disputa acerca da veracidade ou falsidade de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do direito de alguns de falar com a autoridade que alguns outros deveriam obedecer.” (Bauman, 1998)

O problema da verdade é, portanto ligado ao tipo de relações de superioridade que entre os indivíduos ou entre os povos vem se moldando ao longo dos séculos. Neste sentido, toda teoria da verdade segue o modelo de Platão, segundo o qual só poucos escolhidos conseguem emergir da caverna para enxergar as coisas como elas são verdadeiramente. Ao mesmo tempo, porém, a teoria da verdade é elaborada para mostrar aquilo que os outros não conseguem fazer sem serem guiados pelos poucos iluminados. Na modernidade líquida, esta briga de “iluminados” para garantir o monopólio da verdade parece não ter mais espaço.

Porque a possibilidade de que diferentes opiniões podem ser não apenas simultaneamente julgadas verdadeiras, mas ser de fato simultaneamente verdadeiras, a teoria das verdades atualmente no centro da atenção dos filósofos parece ser privada de muito da sua função de disputa (Bauman, 1998)

O efeito da queda das grandes ideologias modernas no campo religioso é a percepção de um mundo plural, de culturas e religiões que não apenas devem ser toleradas, mas que necessitam um espaço vital para se expressar sem censura alguma. Se, na pré-modernidade, a diferença de credo era tolerada, apesar de muitas vezes ter provocado tensões e até guerras, hoje, na modernidade líquida, a pluralidade tornou-se uma necessidade. O problema da identidade, que já analisamos nos parágrafos anteriores e que tanta importância assume na análise de Bauman, vem aqui à tona. A verdade religiosa sempre foi apresentada como algo de absoluto que o indivíduo devia assumir por toda a vida. Os rituais de iniciação serviam para introduzir as pessoas no contexto da comunidade religiosa, cuja característica é a fidelidade aos valores assumidos. No novo contexto cultural, tudo isso é problemático, pois: O problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso (Bauman, 1998).

Nunca, na história, a verdade religiosa encontrou um contexto cultural tão desafiador. A incerteza do estilo pós-moderno, segundo Bauman, não gera a procura da religião, mas sim a busca sempre crescente de especialistas na identidade. As pessoas da modernidade líquida, assombradas pela incerteza que a cultura está gerando, não carecem de pregadores para lhes dizer o que devem fazer.

O fenômeno religioso que, na atualidade, mais chama a atenção de Bauman, é o fundamentalismo. Segundo o autor, o fundamentalismo não tem nada que ver nem com o misticismo, nem com as manifestações da irracionalidade humana, mas é um fenômeno tipicamente pós-moderno. O fundamentalismo consegue desfrutar os desenvolvimentos tecnológicos da modernidade sem pagar o preço salgado que ela exige, ou seja, a agonia do indivíduo condenado à auto-suficiência. O fundamentalismo atrai porque promete libertar os fiéis das agonias da escolha, das agonias da liberdade. Neste sentido, Bauman contradiz a tese comum, que vê no fundamentalismo algo de irracional, pois, segundo ele, o fundamentalismo “é uma oferta de racionalidade alternativa, feita sob a medida para os genuínos problemas que assediam os membros da sociedade pós-moderna” (Bauman, 1998)

A racionalidade proposta pelo fundamentalismo vai na direção contrária à lógica do mercado. De fato, se o mercado promove a liberdade de escolha, prosperando sobre a incerteza das situações de escolha, pelo contrário, o fundamentalismo assume o peso da escolha individual, legislando em termos seguros e firmes sobre todos os aspectos da vida. A segurança e a certeza são postas em primeiro lugar na visão fundamentalista da vida, por isso, neste mundo inquieto e angustiado, muitas pessoas são atraídas por esta proposta.

Segundo Bauman, o fundamentalismo encontra-se hoje presente nas três grandes religiões – cristianismo, judaísmo, islamismo – e é fruto de dois desenvolvimentos. O primeiro é a erosão do cânone rígido que mantinha unida a congregação dos fiéis. Um sinal disso é a proliferação das assim chamadas seitas que, na realidade, são a clara manifestação do desgaste que a essência destas religiões está viven do. O segundo desenvolvimento se encontra no fato que o homem pós-moderno tornou-se um selecionador involuntário e compulsivo minando, desta forma, a autoridade instituída. 

Tudo isso some no fundamentalismo, que invalida todas as propostas diferentes e recusa qualquer forma de diálogo e discussão, instilando nos fiéis um sentimento de certeza. E, assim, o fundamentalismo “transmite uma confortável sensação de segurança a ser ganha e saboreada dentro dos muros altos e impenetráveis que isolam o caos reinante lá fora.” (Bauman, 2005c, p. 93).

Na modernidade líquida, também a religião deve aprender a elaborar novas propostas que saibam encontrar o mundo rápido pósmoderno. Tudo aquilo que cheira velho e obsoleto é destinado a ficar para trás. Isto vale por qualquer fenômeno cultural, também pela religião, qualquer que seja.


Paolo Cugini

Categories:

Deixe seu Comentario